O dia estava nublado. Eram os últimos tempos de aula e a turma do décimo ano adentraria na sala em minutos. Coloquei, como sempre, uma música alegre e descontraída para recebê-los. Já era o final da manhã e eles estavam visivelmente exaustos e eu também.
Mas se eu quisesse o mínimo de participação deles na minha aula, tinha de lutar sempre e tentar surpreendê-los. Então geralmente os esperava com algum adereço, com música animada e, se possível, mudava a configuração da sala: quebrar a rotina é fundamental em qualquer relação. Às vezes colocava um objeto diferente no centro da sala, a fim de instiga-los. A ideia era provocar: perguntas, risos, respostas, afirmações ou mesmo silêncio total. E assim foi.
“Abalou, abalou, sacudiu balançou. Coração é só felicidade. Abalou, abalou isso sim é amor de verdade”, cantava Ivete Sangalo. Os sorrisos apareciam e os braços erguidos entravam na sala e aquele olhar de relaxamento tomou conta do ambiente.
Mas uma estudante entrou com raiva, a maneira como ela jogou sua mochila e seu olhar perdido revelou o clima tenso entre ela e o mundo.
Parecia que ela não estava a ouvir nada, nem a música, nem seus colegas. Cheguei a sua beira e perguntei se estava tudo bem. Ela disse que sim. Segundos de silêncio entre nós e eu a abracei. Os demais, sentados a sorrir, nos viram enquanto tentavam entender a cena.
Parei a música lentamente, comecei a aula e questionei como cada um estava a se sentir. Respostas curtas e monossilábicas: “fixe”, “bem”, “cansado”, “faminto”, “sonolento”, essas coisas.
A menina, que vamos chamar Cris nesse relato, ficou em silêncio. Pedi para formarem duplas e sorteei os nomes (se não for por sorteio, eles escolhem sempre as mesmas pessoas e sempre há os que ficam de fora/por último).
Era dia de improvisação e a ordem era: uma pessoa da dupla escolheria secretamente os personagens dos dois (o seu e da sua dupla) e o parceiro deveria estar a perceber através dos diálogos o que seria e interagir de acordo. Por exemplo: eu decido que minha dupla é meu chefe e sou sua funcionária e começo um diálogo assim: eu não consegui cumprir todas as metas essa semana, mas vou me esforçar mais na próxima semana…e segue.
Duplas formadas e a atividade começa, todos ao mesmo tempo. Posso ver Cris a falar alto, mais irritada que antes e a colega de cena calada. Eu me aproximo e vejo Cris a falar como se a colega fosse sua MÃE. Intercedo e enfatizo que ela precisa ser um personagem e não ela mesma. Peço então pra a colega ser Cris e Cris ser a MÃE. As duas olham para mim e a colega imediatamente começa a cena e Cris não consegue dizer nada, apenas ouve. O colega fala sobre a saudade de um abraço sem motivo, a falta de tempo juntos, as suspeitas e assim por diante.
Fiquei junto e percebi que a colega estava a falar o que escutava da própria mãe e Cris estava a ouvir. Conduzi a cena para o final e as duas se abraçaram demoradamente. Pedi que todos agradecessem ao colega pelo compartilhamento da atividade e conversamos.
O resultado foi transformador: declarações de amor, declarações de decepção e MUITA CATARSE, que é uma sensação de leveza, de limpeza.
As pessoas estão entupidas de emoções.
Elas guardam muita coisa dentro de si. Coisas boas e outra não tão boas. Coisas que magoam e, se reveladas, estariam a esclarecer muito mau humor, muito isolamento, muito desentendimento, muito silêncio.
Falar o que se sente é fundamental! É catártico! Mas falar com CRA (carinho, respeito e amor) e saber escutar é uma virtude.
Na despedida da aula, pedi à Cris para conversar, deixá-la fluir, dizer o que sente, por que do contrário adoecemos: emocionalmente e fisicamente. Ela me disse: mas é a minha mãe.
Respondi que se ela não tivesse coragem de conversar com a própria mãe, como seria com o resto do mundo? Três segundos de coragem e já está! É assim que se começa. As coisas boas e as não tão boas. Seja corajosa para tudo que é bom e o resto fluirá naturalmente. Amanhã estarás melhor, acredita!
Os pais se enganam-se quando dizem que os adolescentes não tem problemas. Tem sim e muitos. Eles carregam o fardo de serem dependentes, julgados e acusados, na busca de ser “alguém”, que eles já são desde que nasceram. Já para não falar da impotência perante tantas coisas. Precisam ser escutados e respeitados. Sem julgamentos, sem preconceitos e sem pressa.
A arte é uma das formas de chegar ao subconsciente, a outra é a loucura. Talvez seja por isso se dizem que todo artista é louco.
No outro dia, Cris não teve aula comigo, mas veio abraçar-me e disse que teve os três segundos de coragem e que foi bom. Sim, a arte cura.
Abraços demorados
Tanise, a Diva.
😃🌻
Que lindo!!!
Parabéns pelo trabalho e pelo texto e pela partilha connosco!!!
Obrigada Simone! É uma alegria para nós compartilhar! 🙂
Tudo de melhor para si! Bjnhos