Sugiro ler a primeira parte deste artigo na publicação anterior.
Estávamos no quarto de uma menina de quatro anos e, enquanto eu manipulava uma marioneta de coelho, para a surpresa de todos a criança fala: “O AU AU!” Silêncio completo. E uma mãozinha trêmula aponta para o coelho e repete: “O AU AU!” E o coelho começa a latir, é claro. Um belo sorriso ilumina todo o quarto, acompanhado por um riso contido. A mãe emocionada é abraçada pelos alunos e uma bela história de cães inicia-se.
A folia naquele quarto chama a atenção do setor de enfermagem, que estava no corredor. Em alguns segundos, o ambiente estava com uma plateia seleta de profissionais da saúde com os olhos marejados e a sorrir abundantemente. A criança, fez um esforço para sentar-se na cama, queria ver os alunos que andavam de quatro a levantar a perna, assumindo o papel de cães a urinar.
Improvisei um coro de cães.
Expliquei à menina que precisávamos de um maestro, alguém que comandasse a todos, que só era necessário levantar o braço para que cantarem cada vez mais alto e mais baixo para o contrário. Ela respondeu que sabia como fazê-lo. E o coro nasceu. Ecoavam pelos corredores cães a uivar e a ladrar. A sensação é que o tempo havia parado.
Cada minuto daquela tarde foi intenso e profundo. Quando saímos do hospital naquele dia, o assunto era o coelho que ladrava. Dias depois recebi feedback de uma enfermeira, salientando o que fizemos: naquela noite, ao contrário das anteriores, a menina dormiu sem se queixar de dores, recebeu menos medicação e a mãe estava a sorrir e a falar muito mais. Parece pouca coisa … mas num universo hospitalar isso é transformador!
O lúdico é o fermento do teatro! Não é apenas brincadeira ou jogo, é qualquer atividade que proporcione momentos de prazer e transcende o brincar. Usar a imaginação como instrumento catalisador é um ótimo recurso.
O voluntariado no hospital ressignificou muito para os alunos que participaram e para mim também. Na altura, recebi uma confissão de um pai: salientou que o filho gostava de trocar de telemóvel sempre que podia. Queria sempre o mais novo, mais atualizado, aquele “da moda”. Disse que, depois da sua inserção no trabalho voluntário, das idas ao hospital, isso perdeu a importância para ele. Percebeu que o jovem estava a valorizar outras coisas. Repito: parece pouca coisa… mas não é!
Quando percebemos com mais clareza o real valor que as coisas tem… quando isso acontece na adolescência… a vida adulta fica diferente. Mesmo que seja com pequenas mudanças no pensar… mesmo que saibamos que a maturidade vem com o tempo e idade… valorizar o que realmente importa é a base para uma pessoa mais feliz, mais em paz!
Acompanho aqueles que foram meus alunos… agora já adultos… e passa sempre um filme na minha cabeça. Daquela equipe de voluntários hospitalares, hoje temos: médica, advogada, dentista, chef de cozinha, quiropraxista, estilista e designer de moda… todos de alguma forma envolvidos em causas sociais.
Ninguém seguiu o caminho do teatro, por que não era esse o objetivo.
Poderiam ter ido por este caminho, se quisessem, mas aproveitaram as oficinas teatrais para extrair o melhor que puderam para as suas vidas e assim foi. Tiveram a educação como fio condutor e lutaram por isso. Sei que todos irão se identificar ao ler esse relato. Á vocês, minha eterna gratidão… por anos de experiência única!
Mesmo nas férias escolares, encontravam tempo para que o projeto e as visitas não parassem. Pois a essência do trabalho voluntário é esta: ser responsável por aquilo que cativas! As pessoas contavam com a nossa presença semanal lá… e sabíamos disso.
Este ciclo encerrou por que me mudei de cidade, por que todos já estavam nas suas vidas adultas… e outros grupos seguiram. E cada um, à sua maneira, fez e faz a sua parte ainda hoje.
As aulas de teatro sempre serão uma memória inesquecível na vida daqueles que o fazem.
Um viva às boas e belas memórias!
Desejo que todos tenhamos muitas memórias assim nesta doida existência. E tu, também cultiva boas memórias?
Carregar uma bagagem assim é um privilégio daqueles que se permitiram desafiar e se envolver em projetos voluntários. Se nunca fizeste nada assim… ainda há tempo. Há muitos lugares e muita gente a precisar. E nada é mais precioso do que doar o nosso TEMPO a outras pessoas, sem querer nada em troca.
É quando não queremos… que recebemos muito mais do que podemos imaginar.
Abraços demorados.
Tanise, a Diva.
😃🌻
Muito lindo!!! Parabéns!!! Que legado maravilhoso que estas aulas de teatro deixaram.